Novo livro do escritor Mayrant Gallo, a novela Verão do Incêndio (Livros Villa Olívia, 2023) acende o fogo o ritualístico da passagem da infância para a adolescência que queima e ilumina a vida. Uma ilha tropical, onde a história se desenrola é o palco ideal paras transformações, exteriores e internas, impulsionadas por mudanças hormonais e comportamentais. Após este último verão da inocência nada mais voltará a ser como antes, pois como virá a reconhecer o menino sem nome, personagem central ao lado da fogosa adolescente Eliane, ele “sabia, de antemão e por intuição, que nada permanece imutável até o fim”.
O Verão do Incêndio é também a estação carregada de libido, a energia vital que parece mover os moradores, jovens e adultos, da paradisíaca ilha do Rio de Janeiro que ambienta a trama, nos final dos anos 60, como intuímos através de referências à Guerra Fria e a crise dos Mísseis entre a União Soviética e os Estados Unidos, que ameaçou o mundo de uma guerra nuclear. É, ao mesmo tempo, uma novela de voltagem erótica (o despertar do sexo para o menino sem nome e iniciação e aprendizado para os adolescentes) e intensidade psicológica, o agitado rito de passagem para a fase de espinhas no rosto e o despertar do desejo.
No corpo da ninfeta Melanie se manifestam as marcas da mudança: “A garota tinha alcançado aquele estágio em que a menina ficara definitivamente para trás, e a mulher invadindo a adolescente, expunha uma sensualidade que era antes pressentida que observada. Não era por suas formas que o desejo e a volúpia despertavam, mas no que de inocente e imberbe o pensamento fazia adivinhar”. Como a Lolita, de Nabakov. O verão na ilha atiça o fogo dos jovens e potencializa a lascívia dos adultos, como o Sr. Gilberto que abusa de Eliane. Afinal, o verão é a estação de Eros. O menino sem nome é um expectador atento que acompanha a rotina dos nativos e dos veranistas que, depois da alta estação, retornam para aos seus afazeres no continente, até o próximo verão.
Na ilha, “há meninos e meninas naquela praia que ancora o Universo”, num movimento sazonal, pois “esses chegam, partem, chama-os o sol e ainda mais forte o verão”. O verão “que é como um corpo nu estendido na areia ou a magreza que corre e se atira na água, biquíni ou sunga fugindo ao impulso das ondas, os pelos públicos revelados, que eram dourados ou negros, sem meio termo”. Essa presença de meninos numa ilha, lembra o clássico “O Senhor das Moscas”, de William Golding, sobre a selvageria na infância.
O que também quebra a rotina do lugar é a chegada da lanche verde, com as novidades do continente e sua carga de mais veranistas. O menino espera a lancha novidadeira como o infausto coronel de Gabriel Garcia Márquez esperava, toda semana, o barco que jamais lhe traria a notícia da aposentadoria redentora. A praia é, acima de tudo, o lugar de encontros e diversão: “E eles ficavam pela praia, corriam, caíam no mar, se embolavam na areia. O menino da ilha fascinado, os louros e os amigos a fazer dele o centro. Mas sem rusgas, mesmo porque os meninos louros o adoravam”. No fim de semana, com a ausência dos turistas, “a menina e o menino eram sozinhos”. Essa solidão compartilhada solidificava a amizade entre ambos.
Anzol no fundo da memória O menino sem nome é inspirado na infância do autor, mas não de todo. “Aqui e ali há uma tinta autobiográfica, como na sequência do incêndio, que realmente existiu, e na visita das parentes idosas, que eram realmente minha avó e minha tia-avó maternas”, confessa Mayrant Gallo nas “Notas sobre o Verão”, ao final do livro, acrescentando ainda: “Dois ou três personagens também foram baseados em pessoas que eu conheci, modificadas, claro; mas não a protagonista, esta é pura invenção”. Nascido no Rio de Janeiro e há muito tempo radicado em Salvador, Mayrant Gallo é autor de romance, contos, novela e também editor. Dentre seus livros destacam-se Três infâncias (Casarão do Verbo, 2011), Cidade Singular (Kalango, 2013), O inédito de Kafka (CosacNaify, 2003), Os encantos do sol (Escrituras, 2013) e O gol esquecido (Gurafa,2014).
Sobre o processo de criação extraído da vida, Mayrant cita uma síntese do crítico de arte e escritor australiano Robert Hughes, que num livro de pescaria diz: “O escritor, ele ou ela, joga seu anzol no fundo da memória e da experiência, no fluido semiconsciente – não no sombrio e abissal inconsciente, que está de fora do alcance, mas na corrente onde a palavra, a frase, a ideia e a memória circulam numa espécie de lusco-fusco, formando seus imprevisíveis desenhos. Com sorte você traz alguma coisa à tona. Se for insignificante, desprezível, você a devolve ao seu habitat”.
Foi o que Mayrant Gallo, pescador experiente, fisgou nas águas turvas da memória: este fim do mundo edênico dos pequenos jovens que é Verão do Incêndio, escrito num estilo enxuto, límpido e cuidadoso de quem pole os objetos de uma cristaleira.
No final da história, quando a família do menino vai embora para o continente, a menina, fica só, com o rosto colado à janela, “lá em cima, em sua casa na colina, como se olhasse a chuva”, vendo o barco partir “com sua esteira de espuma”.
Um rastro que estará sempre atrelada ao passado e às primeiras decepções, que “chegam cedo e deixam marcas”, e que “precisam ser arrancadas do fundo das mentes e dos olhos”. Uma espuma “pura, imponderável, efêmera. A espuma é enfim espuma. Como a vida”.
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